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Lei n.º 33/2013: o diploma da discórdia que todos querem mudar
A lei que veio estabelecer as Entidades Regionais de Turismo (ERT) há muito que se tornou motivo de discórdia. Entre queixas de atropelos à lei, que retiraram autonomia e competências a estas entidades, o turismo regional pede mudanças e mostra-se ainda preocupado com o lugar que lhe está reservado no processo de regionalização.
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A lei que veio estabelecer as Entidades Regionais de Turismo (ERT) há muito que se tornou motivo de discórdia. Entre queixas de atropelos à lei, que retiraram autonomia e competências a estas entidades, o turismo regional pede mudanças e mostra-se ainda preocupado com o lugar que lhe está reservado no processo de regionalização.
Criada há quase uma década, a Lei n.º 33/2013 veio estabelecer o regime jurídico das áreas regionais de turismo de Portugal continental, a sua delimitação e características, assim como o regime jurídico da organização e funcionamento das Entidades Regionais de Turismo (ERT). Com esta lei pretendia-se, na altura, agrupar em cinco ERT, correspondentes às NUT II, as várias marcas territoriais que existiam para efeitos de organização do planeamento turístico no território continental. No entanto, e visto que o país estava, por essa altura, sob assistência financeira, pouco tempo depois, por via da definição do Instituto Nacional de Estatística (INE) do que era o perímetro do Estado, as ERT foram reclassificadas como serviços e fundo autónomo, o que, na prática, levou a que passassem a estar integradas na esfera do Estado da Administração Central enquanto serviços e fundo autónomo.
O problema é que esta reclassificação viola o próprio espírito da Lei n.º 33/2013, que diz que as ERT são instituições de base local e regional, levando a que, como têm vindo a denunciar os próprios presidentes das ERT, existam alguns “atropelos” à legislação em vigor, que acabaram por limitar a autonomia destas entidades, assim como as suas competências.
“Passámos a ter de pedir autorizações infindáveis a várias estruturas da Administração Central do Estado, em vez de exercer aquilo que o legislador expressamente previu, que é uma autonomia financeira e administrativa”, resume João Fernandes, presidente da Região de Turismo do Algarve, em declarações ao Publituris, e revelando que, para tentar solucionar o problema, as ERT procederam já à “elaboração de uma proposta de alteração da lei, conjugando todas as sugestões e propostas das várias entidades”.
Autonomia em causa
Os atropelos de que falam os presidentes das ERT prendem-se essencialmente com a autonomia financeira e administrativa destas entidades. Segundo o responsável do Algarve, a mudança de estatuto levou, desde logo, a uma menor autonomia financeira, pois as ERT tiveram de assumir um “sistema de normalização contabilística da função pública, ficando ainda reféns das cativações do Ministério das Finanças. “Isso foi conjugado com os financiamentos tardios e os sucessivos cortes que a Direção-Geral do Orçamento (DGO) nos impõe, o que leva, muitas vezes, a que não tenhamos condições para exercer as competências que estão na lei”, refere o responsável, que considera que, na prática, existe uma lei que “confere autonomia às ERT mas, depois, há um conjunto de outros subterfúgios” e mudanças “que acabam por contrariar a própria lei”.
Vitor Costa, presidente do Turismo da Região de Lisboa, também se queixa que as ERT têm “falta de autonomia financeira”, considerando mesmo que este é um dos principais “desvios relativamente aquilo que diz a lei 33/2013”. “Por via de alterações nas leis orçamentais, que têm uma hierarquia superior, tem-se desviado e limitado completamente a questão da autonomia financeira”, aponta, explicando que esta falta de autonomia se nota, desde logo, “na disponibilização dos próprios meios”, que chegam às ERT através do Turismo de Portugal, ainda que o caso mais evidente, segundo o responsável, seja o dos saldos, nos quais as ERT não podem mexer, apesar de estes até aumentarem. “As ERT são tratadas como se fossem qualquer outro serviço da Administração Central e, portanto, os saldos vão-se acumulando e não podem ser utilizados, embora a lei diga que podem”, lamenta Vitor Costa, que também se queixa de interferências da DGO, considerando, por isso, que “há aqui um desvirtuar da questão da autonomia financeira e administrativa”.
Em desvios e atropelos fala também Pedro Machado, presidente da ERT do Centro de Portugal, que diz ao Publituris que “a atual lei está esvaziada numa parte substantiva das suas prorrogativas iniciais, como as questões ligadas à autonomia e capacidade deliberativa, muito em particular depois dos ajustamentos em 2015, por força da troika, em que as ERT e as Assembleias Regionais ficaram dependentes da DGO. Por isso, de acordo com o responsável, “o primeiro pré-requisito para uma alteração da lei tem a ver com o devolver às ERT o espírito original da Lei 33/2013, que era de autonomia administrativa e financeira.
O pedido de Pedro Machado é ainda subscrito por Vítor Silva, presidente da ERT do Alentejo, que se mostra preocupado com a falta de autonomia e defende que “deveria haver uma clarificação de todo este processo”. Apenas o presidente da ERT do Porto e Norte de Portugal, Luís Pedro Martins, não se mostrou disponível para responder às questões do Publituris.
Competências
Além da autonomia das ERT, também a questão das competências preocupa, uma vez que, igualmente nesta matéria, “há atropelos à Lei 33/2013 com a produção de novas leis com competências para outras entidades”, nomeadamente no âmbito do processo de descentralização de competências, como aconteceu com a criação das Comunidades Intermunicipais (CIM) e até com as próprias autarquias, como explica João Fernandes. “No âmbito do processo de descentralização, foi conferida às autarquias a competência de promoção turística dos destinos sub-regionais – que ainda hoje estamos a tentar perceber o que é – o que dá espaço para que pequenas localidades estejam presentes em feiras internacionais com uma marca própria. Faz algum sentido que uma pequena localidade exerça essa competência?!”, questiona o responsável, defendendo que, para começar, esta sobreposição de competências leva a “um desperdício de meios”, além de afetar a coesão. João Fernandes questiona também o papel do Turismo de Portugal neste ponto e pergunta se, “no caso da promoção do mercado interno alargado, não fará sentido que, para promover a mobilidade dos turistas portugueses dentro do seu território, sejam estritamente as ERT a fazê-lo e não o Turismo de Portugal?”. Para o responsável é claro que “não faz sentido que seja o Turismo de Portugal a apelar ao turismo interno”, devendo esta competência passar exclusivamente para as ERT. Por isso, considera, essa é também uma questão que deve ser clarificada, quer no que diz respeito ao Turismo de Portugal, quer às próprias ERT”.
No Centro de Portugal, Pedro Machado tem opinião idêntica e defende que as ERT, por serem “os organismos que estão mais próximos dos territórios, das pequenas e médias empresas, e em particular das microempresas, deveriam assumir competências que o próprio Turismo de Portugal sente e sabe que, por força do distanciamento físico, não tem a mesma capacidade de resposta”. “Não tem do ponto de vista da proximidade, nem do ponto de vista temporal”, explica.
Em Lisboa, Vitor Costa está igualmente preocupado e diz que esta é uma questão que “não faz sentido”. “Existir uma ERT e que, em vez de ser reforçada, está a ser enfraquecida, por um lado pelo Estado Central e, por outro lado, por iniciativas que se vão sobrepondo, até aproveitando fragilidades ou expetativas não cumpridas por causa das limitações financeiras, é algo que não faz sentido”, critica, considerando que “há aqui, portanto, uma espécie de um cinismo coletivo”.
E para Vítor Silva, que também alinha nas queixas, esta é mesmo uma das áreas em que “a lei mais está desatualizada”, uma vez que, explica, “as coisas evoluíram muito e, portanto, é preciso mexer na questão das competências, não para retirar competências mas para, possivelmente, acrescentar, modificar e clarificar outras”.
Mudança para ontem
Os presidentes das ERT ouvidos pelo Publituris são unânimes a pedir mudanças à legislação e também não têm dúvidas de que esta é a melhor altura para o fazer. “É preciso corrigir o que está para corrigir, ajustar e devolver autonomia que permita fazer uma aproximação cada vez maior daqueles que são os centros de decisão e, simultaneamente, dos que participam”, diz Pedro Machado.
Além da autonomia, Pedro Machado fala também em “incoerências dentro da própria lei”, a exemplo dos mandatos dos órgãos sociais, que têm diferentes durações. “A duração do mandato do órgão executivo é de cinco anos, enquanto a do mandato do órgão consultivo, que é o conselho de marketing, é de quatro anos. Este é um aspeto pequeno mas que espelha aquilo que são algumas incongruências desta lei”, explica. Para o responsável, “devem ser corrigidas premissas no âmbito da lei 33 que ajustem o normal e desejável funcionamento das organizações regionais”, de forma a “ajustá-la à realidade e aos tempos que correm”.
Tal como Pedro Machado, também o presidente do Turismo do Alentejo fala na necessidade de alteração da lei ao nível da “formação da própria entidade”, considerando que, “em relação à constituição e eleições dos órgãos sociais das ERT, a lei não está muito clara e suscita dúvidas”.
Vitor Costa também reconhece a necessidade de alteração mas defende que o primeiro passo deve passar por “retirar as ERT desta classificação”. “Não podemos ter um movimento em que elas existem, mas que depois é violado por outras leis. A primeira coisa era deixar de haver essa integração e regressar à Lei 33/2013”, diz.
Para o presidente do Turismo da Região de Lisboa, a necessidade de alteração é essencialmente ao nível da autonomia financeira, para que os orçamentos das ERT deixem de passar pelo Turismo de Portugal, com o qual as instituições têm de negociar contratos para poderem receber os montantes que o Orçamento do Estado lhes destina. “Na prática, isto é uma ingerência naquilo que seria a autonomia das ERT”, lamenta. Por isso, também Vitor Costa pede alterações com a maior brevidade, considerando que este poderá ser o momento oportuno para o fazer, não só porque o turismo está a sair da pandemia e precisa, mais do que nunca, de autonomia para “sair da situação difícil” em que se encontra, mas também porque, com o novo ciclo político que se vai iniciar, o Governo conta com “condições políticas diferentes” e “outra capacidade para poder decidir”, pelo que esta seria, para o responsável, “uma boa altura para equacionar estas coisas”. “Deveríamos caminhar para, primeiro, respeitar aquilo que está na lei e, depois, aperfeiçoar a legislação, assim como a prática. Ou seja, aperfeiçoar essa descentralização, o que contribuiria para todo o turismo nacional”, diz. João Fernandes também concorda que a Lei n.º 33/2013 “deve ser atualizada”, até porque as competências das ERT “foram mudando o seu espaço de atuação” à medida das necessidades. No entanto, e segundo o responsável, é preciso ver de que tipo de mudanças se está a falar, uma vez que, se se tratarem de “alterações que são mais de conteúdo do que de forma, nomeadamente ao nível do reforço de competências”, pode ser até mais conveniente partir para a elaboração de uma nova legislação, o mais brevemente possível. “O que faria mais sentido era, aproveitando o ciclo de vigência dos mandatos dos órgãos regionais, que nas ERT terminam em 2023 e até pela circunstância de estarmos a sair de uma pandemia, é preciso reagir primeiro e, depois, pensar em mudar a máquina, pelo que este seria o ciclo mais indicado”, defende.
Regionalização
Mas a questão das competências leva a outras preocupações, ou não estivesse o país à beira da regionalização, que foi uma das propostas do programa eleitoral com que o Partido Socialista (PS) venceu, a 30 de janeiro, as eleições legislativas com maioria absoluta.
Ao abrigo da regionalização, tem-se falado cada vez mais na integração das ERT nas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). No entanto, como dizem os presidentes das ERT, o turismo já tem um modelo regional pelo que a discussão deve ser sobre se essa integração faz sentido. “Quando discutimos a questão da regionalização, estamos a dizer que queremos o poder mais próximo dos cidadãos e as ERT são factualmente uma primeira dessas demonstrações”, refere Pedro Machado, sublinhando que as “ERT são, por definição, o primeiro organismo descentralizado do Estado”. Por isso, alerta, ao mexer nesta questão, o Governo “só pode reforçar o papel das ERT”. “Isto é, se o Governo mantiver a coerência de descentralizar dos organismos nacionais para os regionais, se mantiver essa ambição e passar competências do Estado central para os territórios regionais, então, sendo coerente, só pode reforçar o papel das ERT”, diz, lembrando que “as ERT são organismos desconcentrados, cuja eleição já é realizada por atores locais”.
Vítor Silva concorda e reconhece que “é necessário que transitem competências do poder central para os poderes regionais”, mas mostra-se preocupado por não saber se essa integração traz vantagens. “Há aqui uma discussão a ter, que é se o turismo deve ter a autonomia que tem hoje ou integrar uma estrutura regional”, indica, mostrando-se, desde logo, contra a integração nas autarquias que, diz, “seria um disparate porque voltaria a pulverizar o país em inúmeras marcas”. Para o responsável, a integração das ERT num órgão regional deve ser discutida e afirma que, se lhe demonstrarem que, estando o turismo integrado numa estrutura regional, “mantém a mesma eficiência e autonomia, então sim”. “Não me repugna que, tendo um modelo regionalizado, esteja tudo dentro de uma estrutura de poder da região, se isso significar que o turismo continua a ter agilidade”, explica, invocando o modelo espanhol, que considera não ter trazido vantagens ao setor.
Tal como o presidente do Turismo do Alentejo, também para Vitor Costa a questão não está em saber se as ERT vão ou não integrar as CCDR, mas em perceber se “é útil para o turismo que exista uma organização regional, que seja autónoma e reúna municípios, privados e que tenha uma visão territorial”. E acrescenta: “Se isso não for útil, a solução pode ser qualquer uma, a extinção, a criação de delegações regionais do Turismo de Portugal ou a integração nas CCDR. Mas apenas se se achar que se ganha alguma coisa”, diz, considerando que as ERT têm um “modelo virtuoso” e que “a lei existe há vários anos e com resultados”. Segundo Vitor Costa, há muito que se chegou à conclusão que “o turismo necessita de uma visão e abordagem regional, ligada ao território” e realça que, “quando isto é enfraquecido, o setor fica com menos instrumentos” para trabalhar. “Se ninguém consegue dizer onde estão as desvantagens, porque é que, por razões políticas ou lógicas desligadas da realidade, se vai tomar essas opções?”, questiona, defendendo que, “se se acha que o modelo territorial de descentralização falhou, é preciso perceber porque é que ele falhou”.
Já João Fernandes parece ter menos dúvidas e diz que “o que está previsto é que os organismos desconcentrados do Estado passem para a esfera das CCDR”, o que considera fazer “sentido num modelo de desconcentração”. No entanto, tal como os outros presidentes, também o responsável do Algarve alerta que “as ERT são entidades de base regional”, com “órgãos regionais eleitos, que não são nomeados e não são estruturas com dependência hierárquica”. Para o presidente da Região de Turismo do Algarve, bastaria passar o atual modelo que o turismo já tem para um Governo Regional. “Diria que somos como o Prêt-à-Porter, estamos prontos a vestir porque fomos desenhados num modelo regional e, nesse caso, integraríamos um Governo Regional como as outras áreas”, explica, revelando que as ERT não concordam é que, “no primeiro modelo regionalizado que dá cartas, num setor tão competitivo e num momento tão exigente, se regrida para uma lógica desconcentrada”.
João Fernandes acredita que o modelo das ERT não vai mudar e invoca as palavras de Rita Marques, secretária de Estado do Turismo, que já admitiu a eficácia da governance regional, pelo que, realça, “não parece haver dúvidas sobre este modelo”. O responsável dá o exemplo da Madeira e Açores, onde as secretarias sectoriais são, no turismo, equiparadas às ERT, defendendo, por isso, que este já é “um produto acabado, basta pegar na ERT e transferi-la para o Governo Regional ou outro modelo. E não é preciso inventar, já existe e com bons resultados”, conclui.
*Artigo publicado originalmente na edição 1459 do Publituris, de 18 de março de 2022.