Opinião

Segurança versus pontualidade do voo: a opção dos juízes alemães

A avaria de uma aeronave faz parte da atividade normal de uma companhia aérea, devendo, em condições normais, o passageiro ser indemnizado pelo cancelamento do voo. Situação diferente é a que abrange metade dos aviões de uma frota cuja inspeção foi precipitada pela avaria de um motor no próprio dia do cancelamento.

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Segurança versus pontualidade do voo: a opção dos juízes alemães

A avaria de uma aeronave faz parte da atividade normal de uma companhia aérea, devendo, em condições normais, o passageiro ser indemnizado pelo cancelamento do voo. Situação diferente é a que abrange metade dos aviões de uma frota cuja inspeção foi precipitada pela avaria de um motor no próprio dia do cancelamento.

Carlos Torres
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Carlos Torres

1) Inspeção não programada de metade da frota de uma companhia apressada pela falha de um motor no dia do cancelamento
A avaria de uma aeronave não obsta a que os passageiros afetados sejam indemnizados em caso de cancelamento de um voo. Nestas situações, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem entendido que o Regulamento 261/2004, garante aos passageiros, no seu art.º 7º, uma indemnização – 250€, 400€ ou 600€ – calculada consoante a distância do voo. A avaria de uma aeronave é considerada como um evento normal na atividade de uma companhia aérea.

O caso decidido pelo supremo tribunal alemão (BGH), em 10 de novembro último, sufragou compreensivamente um entendimento diferente, atendendo ao significativo número de aeronaves envolvidas.

Os passageiros contrataram voo para 15 de outubro de 2019, da Cidade do Cabo para Estugarda, via Zurique, com um número único de reserva. O réu foi a empresa de aviação que operou o segmento Zurique – Estugarda, o qual foi cancelado. Consequentemente, os passageiros chegaram ao destino através de um voo de substituição, sofrendo, porém, um atraso de mais de oito horas.

Sucede que companhia tinha submetido 28 aeronaves de sua frota Airbus A220 a uma inspeção aos motores, na sequência de uma instrução emitida pela autoridade aeronáutica dos EUA para realizar inspeções nesse modelo após determinados ciclos de voo. Para além da instrução emitida pela Federal Aviation Administration (FAA), na sequência de vários incidentes, nesse mesmo dia tinha ocorrido uma falha no motor de um avião.

Não obstante, a  primeira instância condenou a companhia aérea  a pagar 1.200 euros acrescidos de juros, decisão que foi revertida pelo tribunal de recurso, considerando que um imprevisto abrangendo cerca de metade de todas as aeronaves existentes, afeta tipicamente uma parte significativa da frota e, portanto, não faz parte da atividade normal de uma companhia aérea.

Ou seja, se houver motivo para submeter todas as aeronaves de determinado modelo a uma inspeção, obviamente que não se pode aconselhar a companhia aérea a aguardar a inspeção de cada uma das aeronaves de molde a evitar atrasos e cancelamentos de voos, ignorando, assim, os riscos daí resultantes para a segurança dos passageiros.

Por essa razão a companhia aérea não deveria ser condenada a fazer o pagamento da indemnização, apesar do cancelamento do voo e do atraso de mais de oito horas horas (a regulamentação europeia exige apenas 4 horas de atraso para voos com tal distância). A companhia aérea explicou e demonstrou que tinha motivos para submeter a sua frota a uma inspeção não programada com base nas instruções da autoridade aeronáutica americana. Acresce que metade de suas aeronaves de curta e média distância foram abrangidas pela instrução. No entanto, os passageiros simplesmente contestaram, não respondendo à fundamentação adicional da companhia.

Devido ao grave problema técnico de segurança que afetou grande parte das aeronaves da frota, o cancelamento do voo foi inevitável. A companhia aérea não era obrigada a fornecer aeronaves de substituição nessa situação.

De harmonia com o nº 3 do art.º 5º do Regulamento 261/2004, a transportadora não é obrigada a pagar a indemnização acima referida, mediante um duplo condicionalismo:

a) O cancelamento deveu-se a circunstâncias extraordinárias;

b) A companhia não as poderia ter evitado ainda que tivesse tomado todas as medidas necessárias.

 2) Circunstâncias extraordinárias
Circunstâncias extraordinárias são, de acordo com a jurisprudência constante do TJUE, as que estão fora do que é normalmente associado ao curso do transporte aéreo de passageiros. São eventos que não pertencem ao tráfego aéreo, mas como circunstâncias especiais que geralmente vêm de fora, podem prejudicar ou impossibilitar sua execução ordenada e planeada.

De acordo com as conclusões factuais do tribunal de recurso, a companhia alegou que no dia do voo cancelado todas as suas aeronaves Airbus A220 – cerca de metade das suas aeronaves de curto e médio curso – tiveram uma inspeção não programada devido a uma falha de motor que ocorreu no mesmo dia. Trata-se, assim, de um incidente que diz respeito a uma parte significativa da frota que, pela sua natureza, não faz parte da atividade normal de uma transportadora aérea.

Nesse contexto, é também irrelevante se as inspeções ocorridas foram causadas por defeito de fabrico ou por uma atualização de software. Em qualquer dos casos, existem defeitos técnicos que afetam significativamente as operações de voo.

É também irrelevante se a companhia foi obrigada a examinar de imediato todas as aeronaves Airbus A220 em consequência da instrução da FAA de 26 de setembro de 2019 ou de outras disposições legais. Mesmo que a transportadora tivesse discricionariedade a esse respeito, a avaria no motor ocorrida em 15 de outubro de 2019 teria dado motivo para diligenciar que outros passageiros não corressem o risco de defeitos em máquinas desse tipo, na medida do possível. A companhia não pode ser aconselhada a inspecionar sequencialmente as aeronaves, em vez de simultaneamente, para evitar atrasos e cancelamentos, aceitando de ânimo leve os riscos para a segurança dos passageiros.

3) Medidas razoáveis para evitar o cancelamento do voo
De acordo com a jurisprudência do TJUE, a transportadora aérea deve desenvolver todos os esforços possíveis e razoáveis ​​para evitar que circunstâncias extraordinárias determinem o cancelamento de um voo ou que só possa ser operado com um grande atraso, cujas consequências para o passageiro equivalem a um cancelamento (caso C-549/07, Wallentin-Hermann/ Alitalia).

As medidas razoáveis ​são determinadas pelas circunstâncias de cada caso. Por um lado, depende das precauções que uma transportadora aérea deve tomar de acordo com as boas práticas profissionais, para que não ocorram pequenas perturbações no curso normal do tráfego aéreo que impeçam a transportadora aérea de cumprir as suas obrigações contratuais e manter o voo planeado. Por outro lado, se ocorrer ou ameaçar ocorrer uma deficiência para além da normalidade, a transportadora deve tomar todas as medidas ao seu alcance para evitar, tanto quanto possível, um cancelamento ou um atraso considerável (caso C-294/10, Eglītis e Ratnieks /  Air Báltico).

O BGH considerou que o tribunal recorrido decidiu acertadamente que a companhia tomou todas as medidas razoáveis ​​para evitar o atraso do voo. O voo cancelado era a última conexão de Zurique em 15  de outubro de 2019,  pelo que não  foi possível remarcar um voo no mesmo dia devido à proibição de voos noturnos em Estugarda.

4) Tribunal alemão entendeu que a questão não tinha de ser submetida ao tribunal europeu
O BGH não descortinou qualquer razão para submeter a questão ao TJUE, através do mecanismo do reenvio prejudicial (o tribunal nacional reenvia  / remete a questão jurídica para os juízes europeus a apreciarem). Entendeu que o juiz nacional é responsável por examinar se um problema técnico é devido a um evento insusceptível de controlo, que não faz parte do curso normal de negócios da transportadora aérea.

Sobre o autorCarlos Torres

Carlos Torres

Jurista e professor na ESHTE
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