Orgulhosamente imperfeita
Não gosto, de todo, de um Estado que se coloca acima de todos os seus cidadãos, e os diminui, considerando que é o Estado, e não eles, quem melhor sabe o que é melhor para cada um, com o objetivo de criar um modelo de ser humano que seja perfeito.
Para que fique desde já claro, e sem qualquer névoa, até porque é de tabaco que vou falar, começo por dizer que não sou fumadora, nunca fui fumadora, sei bem os malefícios causados pelo tabaco, não aconselho ninguém a fumar, mas pela primeira vez na vida, quase me apetece “puxar de um cigarro”.
E isto a propósito da recente proposta do governo para alterar a Lei do Tabaco, em que se prevê mais restrições, proibições, interdições, inibições, obrigações e outras que tais.
Apesar da proposta que acabou por dar entrada na Assembleia da República denotar um recuo relativamente a algumas medidas, outras, não menos gravosas, continuam a figurar. E considero-as gravosas por razões diferentes.
Temos nesta proposta decisões que são tomadas sem atender, minimamente, ao investimento que os empresários fizeram, fruto das várias e constantes alterações que a lei vem sofrendo desde que foi publicada, em 2007. Igualmente, pretende-se proibir a venda de tabaco nos estabelecimentos de restauração e bebidas, concentrando-se a venda em determinado tipo de estabelecimentos, sem que se garanta qualquer impacto ao nível da diminuição da quantidade de tabaco vendido, mas já terá impacto na faturação de quem hoje vende tabaco, muitas vezes pequenos empresários, em terras onde o restaurante, ou o cafezinho, é o único estabelecimento num raio de quilómetros.
Ao que acresce, e aqui é o mais importante, o facto de a “Saúde” ter outros caminhos a trilhar, no meu entender mais eficazes, que passam por formação, educação e sensibilização. Posso-vos dizer que o meu filho tem 21 anos, está a acabar a sua licenciatura e nunca no seu percurso escolar foi sensibilizado para os malefícios do tabaco. Claro que os pais o fizeram e hoje não fuma, nem nunca fumou, mas o Estado devia preocupar-se com todos os que não têm este exemplo. Tudo isto, a par do apoio das entidades de saúde para quem pretenda deixar de fumar, ao nível da disponibilização de consultas e comparticipação de medicamentos para cessação tabágica.
Mais, a Lei do Tabaco prevê a elaboração e entrega à Assembleia da República, de cinco em cinco anos, de um relatório sobre o tabaco, coisa que não acontece há mais de uma década, e certamente que decisões tomadas sem informação têm tudo para correr mal.
E agora, as outras ordens de razões, mais profundas e ideológicas, e que me atormentam desde que conheci a proposta.
Longe vão os tempos em que o ato de fumar era cool e estava associado a glamour, a status, e nos entrava pela televisão e pelos olhos “adentro”. Hoje, muito fumo correu por baixo e por cima da ponte e a nossa realidade é completamente distinta. Hoje acredito que não haja uma alminha que fume, que não saiba o mal que isso lhe pode trazer.
Posto isto, só há uma conclusão a tirar, e que é bem capaz de ser a única que é consensual. Quem fuma, é porque quer fumar.
Já sou filha do 25 de abril e, pela primeira vez, senti alguns laivos, admito que ténues, daquilo que poderá ter sentido quem viveu na ditadura, porventura aproveitando-se a experiência recente de restrições a direitos e liberdade individuais por ocasião da pandemia.
Não gosto, de todo, de um Estado que se coloca acima de todos os seus cidadãos, e os diminui, considerando que é o Estado, e não eles, quem melhor sabe o que é melhor para cada um, com o objetivo de criar um modelo de ser humano que seja perfeito. Ora, o mundo não é perfeito porque as pessoas não são, nem nunca serão, perfeitas, e isso passa pela sua liberdade, e é também dessa imperfeição que nasce o seu encanto.
Muito mais haveria para dizer, mas termino com uma frase do filósofo-político John Stuart Mill, sobre limites da retirada de direitos, para refletir.
“O único propósito para o qual a potência pode ser exercida legitimamente sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar danos aos outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não é garantia suficiente.”