“A identidade é a coisa mais forte que nos pode garantir o futuro”
A expansão para o alojamento turístico foi um crescimento natural para a Mainside, conhecida pelos projetos disruptivos e arrojados da LX Factory e da Pensão Amor, em Lisboa. Carlos Queirós, administrador da empresa, fala-nos da importância de “beber” a história dos edifícios para lhes dar uma nova vida, agora com os ZERO Hotels.
Raquel Relvas Neto
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Os ZERO Hotels são uma das áreas de negócio mais recentes da empresa Mainside, conhecida especialmente pela criação da LX Factory ou da Pensão Amor, em Lisboa. Depois de abrir o ZERO Lodge Box Porto, na Cidade Invicta, a Mainside abriu, no passado mês de julho, o ZERO Lodge Box Coimbra, na Cidade dos Estudantes. Estes projetos trouxeram para Portugal um conceito de hotelaria diferente inspirado nos hotéis cápsula japoneses, que se adequam, sobretudo, a edifícios nos quais a hotelaria tradicional não teria lugar. Carlos Queirós, administrador da Mainside, em entrevista ao Publituris, no recém-aberto ZERO Lodge Box Coimbra, explica que a empresa não tem ambições de crescer na hotelaria tradicional, pois “não conseguimos ser concorrenciais no normal, porque há imensa gente a fazer melhor do que nós. Conseguimos, sim, ser concorrenciais e únicos no anormal”. Nesta entrevista, o empresário releva ainda a importância da preservação da identidade de Portugal na concorrência com outros destinos.
Com o projeto da LX Factory pode-se afirmar que foram visionários, porque criaram uma nova centralidade na cidade de Lisboa, forte em conteúdos culturais e turísticos e já adaptada ao chamado turista ‘millennial’. O que vos motivou a lançar um projeto tão diferente em 2008?
Não planeamos tudo quando fazemos um projeto. Planeamos um ponto de partida e delineamos uma estratégia, mas os projetos não são completamente fechados na sua conceção. Costumo dizer que a boa conceção de um bom projeto corresponde a 50 por cento. Depois temos mais 25 por cento que é a implementação, talvez a parte mais difícil e, no final, temos mais 25 por cento que é o acompanhamento do processo. O processo não é linear e é preciso estarmos lá todos os dias para encostá-lo para a direita ou para a esquerda, como se fosse um navio em alto mar, em que as ondas vão puxando para um lado e nós temos de corrigir ou não, ou então deixamo-nos ir na onda. Este projeto é um bocado isso.
A LX Factory cresce com um objetivo diferenciador. No fundo, quisemos fazer um espaço para as pessoas trabalharem e viverem num contexto fabril. Não foi pensado para turistas, foi pensado para o interior, mas a pensar num complemento global: quem trabalha tem de ter condições para trabalhar, mas não é só um espaço para trabalhar. É também um espaço para estar, para um evento, porque, na realidade, as pessoas acabam por passar a maior parte do seu dia no local de trabalho.
Ter uma escola de dança, os restaurantes, uma livraria, tudo isso era um complemento de um espaço de trabalho, nunca virado para o exterior, mas sim para as pessoas que estavam lá. Era um espaço de trabalho único.
Entretanto, foi descoberto e foi absorvido. Obviamente que tivemos de saber corrigir e não infletir um bocado em algumas coisas e seguir o rumo que também acabou por tomar.
A LX Factory é um espaço onde os residentes e os trabalhadores coabitam em pleno com os visitantes e turistas. Antes da pandemia, isto era um desafio que se vivia no resto da cidade de Lisboa. Qual é o segredo desta fórmula?
Todos trabalhamos, às vezes, a tentar conduzir as coisas para o sítio certo. O impacto do turismo, da reação negativa ao impacto grande do turismo – agora temos a reação negativa que é o não haver turismo – julgo que é natural nas cidades. Todas elas crescem e ao crescerem vão passando por momentos diferentes. Quando olhamos para uma cidade como Lisboa, ou como Nova Iorque, por exemplo, há toda uma auréola que circula na cidade que é uma auréola de transversalidade, quer de artistas, de coisas mais alternativas onde as pessoas podem habitar e onde uma coisa coabita com a outra. O que acontece é que, quando os visitantes/turistas a ocupam, ela desvirtua-se, perde capacidade de ocupação para os habitantes, porque sobe de preço. Coabitar as duas partes tem a ver um bocado com isso: a cidade estar preparada para uns e para outros. Obviamente que o turista procura umas coisas e tem uma capacidade financeira que é diferente do residente.
Depois a tradição que se tem, seja em Lisboa como em outras cidades, é criar regras limitativas, é impedir e proibir. E essas regras nunca funcionam bem, funcionam sempre ao contrário, têm um efeito de reverso daquilo para que foram pensadas. Para mim, não devíamos proibir, mas sim alimentar o que queremos, que é fazer o inverso de proibir.
A Lx Factory tem uma vasta oferta de conteúdos para todos os gostos e bolsos. Como operador em Portugal, como classifica a atual oferta de conteúdos que existe? Poderíamos melhorar a experiência que oferecemos ao turista?
Julgo que há uma coisa base e fundamental que é não perder a identidade. As coisas são apetecíveis e ganham qualidade quando não perdem a identidade. Quando começamos a crescer e a ficar igual aos outros todos e deixamos de olhar para aquilo que é a nossa identidade, ficamos iguais a todo o mundo e deixamos de ter interesse. A identidade é a coisa mais forte que nos pode garantir o futuro e a qualidade da oferta. O grande esforço é esse: não perder a identidade.
Quando vou à baixa de Lisboa, ao sítio mais turístico, vemos que já não tem identidade nenhuma, são lojas que existem no mundo inteiro. As tasquinhas ou a lojinha do senhor das ferragens, aos poucos, foram desaparecendo ou quase já não existem. A identidade que era nossa vai-se perdendo.
Somos um povo muito rico, tivemos azar numas coisas, mas temos uma história incrível, uma herança histórica que nos dá um potencial incrível. Temos esta riqueza, se conseguirmos preservá-la, valorizá-la, garantidamente é um grande poder que temos competitivamente face a outros.
A Mainside pretende continuar a contribuir para esses conteúdos, replicando, por exemplo, o modelo do Lx Factory noutra parte do país?
Quando criámos a Lx Factory tínhamos uma linha condutora em que a matriz estava lá toda, mas num contexto diferente. Depois de fazer a Lx Factory, que virou um sucesso, primeiro lá fora e depois cá dentro, começámos a ser convidados para fazer Lx Factory espalhados por esse mundo inteiro. O que para nós não faz sentido, a Lx Factory é um projeto único e para se fazer naquele local.
É preciso fazer coisas que façam sentido, em vez de fazermos sempre o mesmo.
ZERO Hotels
O passo para o Alojamento Turístico resulta de um crescimento natural da empresa?
Sim. Trabalhamos em investimentos na área do imobiliário e o nosso foco é a reabilitação, ou seja, olhar para edifícios e reabilitá-los, dar-lhes uma segunda e terceira vida. Quando o fazemos, fazemos com a sua história, com a sua presença. Quando se fala em reabilitação há uma pré-existência completamente definida.
Muitas das vezes reparamos que há edifícios muito difíceis, que têm exigências que não se adequam a um clássico projeto imobiliário e é aí que entramos. O nosso forte é aí, não conseguimos ser concorrenciais no normal, porque há imensa gente a fazer melhor do que nós. Conseguimos ser concorrenciais e únicos no anormal.
Ninguém pegava nisto [antiga garagem automóvel que deu lugar ao ZERO Lodge Box Coimbra] e colocava pessoas aqui a dormir. Como? Sem janelas? Nós olhamos sempre nessa perspetiva: os usos adaptados aos edifícios, à existência. Fizemos isso em todos os projetos de reabilitação. Toda a nossa história é dar sempre a volta nesta base.
É aí que sabemos trabalhar: olhar para edifícios que à partida são disfuncionais e pô-los funcionais, mas com uma função diferente do normal, porque a outra seria normal e forçada.
O vosso primeiro projeto de alojamento foi no Porto?
Já tivemos edifícios na área de hotelaria antes, mas não sob a nossa gestão. Desenvolvemos projetos hoteleiros e depois acabámos por vender.
Aqui entrámos num contexto diferente, numa área de hotelaria ou de alojamento completamente diferente. Se fizer um hotel clássico, tenho 1.500 pessoas interessadas em comprar. Quando faço uma coisa não clássica já é difícil, porque já temos de pensar na operação toda, na gestão até ao final.
Esta ideia das cápsulas não surge no Porto, surge quando começámos a trabalhar o projeto do Desterro, em Lisboa. Um mosteiro com 500 anos, que era um alojamento de monges, e no fundo já habitavam naquele edifício. Eram centros de produção incríveis.
Quando pegámos nesse edifício quisemos dar-lhe a vida de centro de produção, pensámos em pôr pessoas a viver, a trabalhar, a consumir e produzir um bocadinho à imagem dos mosteiros.
No entanto, nos mosteiros vivia-se em camaratas gigantes. (…) Quisémos manter a sua génese, a grande dimensão das naves, ocupá-las e pôr lá pessoas a dormir. Criámos a cápsula. A cápsula de madeira surgiu para criar condições de conforto e habitabilidade, onde tivesse conforto sonoro, térmico e de luminosidade, que é aquilo que precisamos para descansar, numa sala partilhada. Era fazer uma caixa de madeira onde pudéssemos entrar e ter este conforto todo, mas não perder a espacialidade. É aí que surge a primeira ideia da cápsula.
Como este processo anda tão devagar, surgiu Porto, que se adaptava a este contexto diferente, porque obviamente o edifício tinha características diferentes e a solução desenhada também foi ligeiramente diferente. Estes projetos foram pensados para ter uma parte de dormida e uma parte social, porque uma não é dissociável da outra.
Hoje em dia, as pessoas querem viajar não para dormir, mas para conviver, conhecer pessoas. Neste projeto, no quarto temos só o que é essencial para dormir, tomar banho, e a parte social é partilhada. Por isso, apostámos em ter uma parte social muito forte, com muitas atividades para criar essa relação.
O projeto do Porto surge assim,. Temos um edifício sanduíche, com uma parte de baixo onde é a parte social, com restauração, bar e o projeto que é o ‘free room’, uma biblioteca do Gonçalo M. Tavares. Depois, temos os vários pisos de alojamento, que são quatro, e voltamos a ter uma área social no último andar, com um cine-club, com que área de cafetaria e restauração, uma zona de estar, e ainda um terraço com uma certa atividade.
Todas estas unidades têm a parte social, a componente de criação, de conhecimento para as pessoas que coabitam o mesmo espaço.
Depois surgiu este projeto de Coimbra?
Este edifício era uma garagem de automóveis, não tinha esta configuração nem este aspeto. Aqui, fomos buscar a ideia das garagens em altura americanas, em que se colocam os carros todos uns em cima dos outros, em estruturas metálicas, e a nossa ideia era criar uma grande nave com todos os carros empilhados, que aqui são as cápsulas, com uma rampa no meio que lhes dá acesso. Depois, no piso de cima, criámos a zona social, que é um complemento importante. A génese é a mesma, mas num contexto de aplicabilidade diferente. Coimbra é uma cidade incrível, com história, com um potencial de património incrível, onde acho que ainda está tudo muito por acontecer. Portanto, achamos que faz todo sentido olhar também para ela.
Não queremos ser um grupo hoteleiro, queremos fazer projetos que nos apaixonem e as coisas vão surgindo com naturalidade. Agora estamos no Alentejo, Tomar e em sítios completamente diferentes, porque há um potencial, há um edifício que nos conta uma história e nós vamos lá ouvi-la e dialogar com ele.
A Mainside tem outros projetos previstos?
Neste momento, estamos a terminar a obra de um edifício, em Lisboa, no Cais do Sodré, que também é uma unidade de alojamento num conceito diferente. Este é um conceito novo que criámos e fomos obrigados a criar um nome. Como não é um hotel, não é um hostel, não se encaixava em nada, nós próprios criámos uma marca que é o Box Lodge e está classificado como alojamento local.
Nos que estamos a desenvolver em Lisboa já se trata de um conceito diferente, que definimos como ‘concept Lodge’. É um alojamento mais tradicional, os edifícios são mais fáceis de ocupar, sendo um conceito de apartamentos e suites. Serão 21 no total.
Estamos com dois projetos em Lisboa, um a acabar a obra, que irá abrir este ano, se houver condições para isso. E no outro estamos a começar a obra para abrir daqui a dois anos, que é no edifício onde é a Pensão Amor, que vai ter 24 suites. Vai ser um conceito mais temático, vai ‘beber’ um bocado a sua história.
O atual momento de alguma forma impactou no desenvolvimento dos vossos projetos, no próprio conceito dos mesmos, como por exemplo nas áreas sociais?
Todos os nossos projetos, não só de hotelaria e restauração, são feitos para pessoas. Somos provocadores de pessoas. O que fazemos nos nossos projetos é juntar pessoas, portanto, a pandemia deitou-nos ao fundo. Ela não quer pessoas juntas e nós estamos fora do contexto desde que ela surgiu.
Não sinto vontade de mudar com a pandemia, que é um bocado o que as pessoas estão a fazer: coisas que sejam resistentes a isto. Só estou à espera que isto volte ao normal. Não vou deixar de fazer o que faço e que sei fazer bem porque uma pandemia agora quer que faça prisões ou outra coisa qualquer. Não faz sentido.
Só tenho de esperar e continuar a fazer, porque isto é o que julgo que está bem, a interação. As pessoas não estão preparadas para viver isoladas.
Por onde passa o futuro da Mainside?
É continuar a fazer o mesmo. É irmos à procura de coisas que nos digam algo, que nos chamem e mexam connosco. P