Costa Ferreira: “Salvámos o setor com a interrupção da lei”
Sete meses depois da pandemia ter paralisado o setor do turismo, Pedro Costa Ferreira faz um balanço do atual estado do setor da distribuição. Em alguns casos a quebra de negócios chega aos 100%.
Carina Monteiro
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O setor das agências de viagens e operadores turísticos ainda está “em jogo” numa luta pela continuidade e sobrevivência. As falências ainda não entraram no setor e Pedro Costa Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Agências de Viagens e Turismo (APAVT) considera que ainda há um espaço grande de diálogo com o governo a nível de apoios. Urgente é chegar a acordo com a TAP para o reembolso da dívida de cerca de 25 milhões de euros. Algo que se estima que aconteça já este mês.
Ao fim de sete meses de pandemia, em que situação se encontram as agências e os operadores turísticos?
O estado real é um setor completamente paralisado, com quebras de volume de negócio que deverão rondar, na maior parte dos casos, entre 80% e 100%. Os eventos, por exemplo, são 100%. Por causa disso, o setor vai ter resultados líquidos negativos, absolutamente brutais, e provavelmente sem paralelo na história. E, por causa disso também, apesar dos últimos anos de sucesso, vai ter balanços completamente destruídos. Este é um ano que vai apagar, com alguma facilidade, quase uma década de ganhos no setor. Julgo que o grande desafio a partir de agora é ter um setor que tem uma necessidade brutal de recapitalização e tesouraria, por causa dos resultados negativos anormais, quando ao mesmo tempo, por causa dos balanços destruídos, vai ter a sua pior fase de capacidade de diálogo com as entidades financiadoras. Esse é o grande desafio dos próximos anos. Porque mesmo no momento de retoma, pelas necessidades de tesouraria que implicam essa retoma, essas dificuldades vão continuar. Vamos falar desta crise certamente até 2024.
O que se prevê que aconteça ao setor da distribuição com esta crise: falências, fusões, mudanças no modelo de negócio?
O cenário é como nunca foi. Portanto, é natural que alguns de nós abram falências e, é também natural que, no momento de retoma, que as dificuldades de tesouraria de alguns possam ser uma oportunidade de negócio de outros, portanto, que possa haver quer fusões, quer aquisições. Espero também que haja sobrevivência e continuidade. Ainda estamos, enquanto setor, no jogo.
Não creio, ao contrário do que muita gente tem dito, que haja uma alteração do modelo de negócio. Julgo que vai haver uma aceleração das tendências dos últimos anos. A nível macro, as questões relacionadas com a sustentabilidade, autenticidade, com haver cada vez mais turistas que procuram locais menos massificados, o comércio justo e o ‘slow tourism’ vão colocar-se de forma mais vincada. A nível micro, exatamente a mesma coisa. Já não era muito óbvio o futuro de modelos de negócio baseados no crédito ou em margens muito baixas. Neste momento, depois da crise, serão negócios praticamente impossíveis de levar para a frente. Cada vez mais, modelos de negócio que não incluam a criação de valor e a perceção pelo consumidor dessa criação de valor são modelos de negócio mais vetados ao fracasso do que antes da pandemia.
As falências ainda não entraram no setor. Ainda estamos no jogo da sobrevivência e continuidade e julgo que ainda há um espaço grande de diálogo com o governo a nível de apoios. Tem havido sucesso nesse diálogo e nos resultados desse diálogo, julgo que ainda é possível chegarmos vivos ao momento da retoma.
Quantos meses mais as agências aguentam?
Neste momento a visão do governo, que é a nossa também, é termos uma retoma mais efetiva a partir da próxima Páscoa. Esperemos que assim seja, porque tem sido sucessivamente adiada. Estamos a trabalhar no nosso modelo de apoios no sentido de conseguirmos sobreviver até lá.
Que ações a APAVT desenvolveu junto dos seus associados durante o período da pandemia?
Tivemos três blocos fundamentais. O primeiro logo no início da perceção da pandemia. Antes do confinamento já estávamos a fazer um gabinete de crise, que pretendeu tornar mais célere as reações da APAVT e aumentar a capacidade de reação. Esse gabinete existe até hoje e ainda vai continuar pelo menos até à posse da nova direção. A primeira decisão do gabinete de crise foi o investimento no departamento jurídico da APAVT, porque percecionámos logo que as necessidades dos associados a esse nível iam ser muito superiores. As nossas indicações para o departamento jurídico foi tratar de toda e qualquer necessidade particular de cada empresa. Finalmente, ainda neste primeiro bloco, tivemos uma primeira maratona junto do Gabinete de Emergência Consular por causa do repatriamento. Foi um momento difícil, mas devo dizer que foi também um momento feliz para as agências de viagens, porque foi um momento de credibilização. Naquele momento, as agências de viagens saíram reforçadas do ponto de vista da sua credibilização, e muita gente percebeu que, num mundo incerto, as agências de viagens são um porto seguro.
Depois entrámos numa segunda fase, provavelmente com os processos mais densos, delicados e importantes. Desde logo, a interrupção da lei. Salvámos o setor com a interrupção. Não temos nenhuma dúvida disso. Salvando o setor, salvámos os reembolsos dos clientes. De referir que Portugal foi o país europeu em que a lei foi interrompida pelo maior período de tempo. Isso é bom. De realçar que, em cima disso, tivemos que gerir, juntamente com a tutela do turismo, o processo de infração que nos foi levantado pela Comissão Europeia. Em relação a este processo, tivemos um trabalho muito próximo do Governo. Temos que fazer um grande elogio à secretária de Estado do Turismo, que percebeu o momento e defendeu bem o setor e, ao defender bem o setor, salvou os reembolsos.
Depois tivemos um segundo grande capítulo, relacionado com os acordos governamentais. Uma vez que entrámos num período de sobrevivência, tivemos que acompanhar, sugerir e discutir todos os processos de apoio que têm sido colocados junto do setor do turismo e das agências de viagens.
Um terceiro capítulo teve a ver com a sustentabilidade da cadeia de valor. Percebemos, logo em março, que desta crise ninguém sai sozinho. Percebemos que tínhamos de fazer acordos com os nossos fornecedores, no sentido de lhes dar tempo também para nos reembolsar. Fizemos um com a TAP, infelizmente não está a funcionar e estamos a tentar um segundo. Fizemos um importante com os operadores turísticos que está a funcionar, com companhias de seguros, com a hotelaria. Continuamos com este processo, mas foi muito importante na altura darmos esse tempo porque a cadeia de valor não se aguenta se algum dos elos fraquejar.
Por fim, temos participado nas reuniões da ECTAA, onde trabalhamos os assuntos que têm que ser colocados a nível europeu. Se nesta crise ninguém sai sozinho, também ninguém altera alguns aspetos fundamentais se não for a nível europeu. Estamos a falar da harmonização das restrições das viagens, dos reembolsos das companhias aéreas, que continuam sem ser feitos, e das necessidades de tesouraria das empresas por causa da ausência dos reembolsos das companhias aéreas. E estamos a falar de um processo que será central no futuro de todo o setor, que é uma lei absolutamente iníqua, desadequada, relativamente à qual, a nível europeu, alguma coisa tem de ser feita e, a nível da ECTAA, não falamos, entre aspas, de outra coisa.
Há dois anos, dizia que os factos não traziam ainda qualquer necessidade de alterar a lei. Os factos alteraram-se e agora é preciso alterar a lei?
É absolutamente necessário. Nunca escondemos que a lei era iníqua porque centra as responsabilidades num único elo da cadeia de valor. Sendo iníqua, a grande verdade é que conseguimos viver com a lei, através de diversas ações, nomeadamente com um trabalho muito positivo junto da atividade seguradora. Até mais, conseguimos fazer da lei e da sua iniquidade uma diferenciação a nosso favor, porque, de certa maneira, as agências através da lei passavam a ser mais confiáveis. Hoje, tudo se alterou radicalmente, se a lei era iníqua e desequilibrada num mundo normal, é absolutamente difícil ou quase impossível de gerir num mundo anormal. O único desafio, se tivesse de eleger apenas um, é casar estes dois universos tão difíceis de casar: por um lado as agências de viagens são vistas pelo consumidor como um porto seguro quanto mais incerto for o mundo, e, quanto mais incerto for o mundo, mais difícil é às agências de viagens viverem com a lei. Do casamento possível destas duas realidades depende o futuro do setor.
Mas esse trabalho de mudança da lei já está a ser feito?
Esse trabalho está a ser realizado a nível europeu e não escondo várias dificuldades. Primeiro, o timing. A lei demorou cerca de 15 anos a ver a luz do dia. Podemos imaginar o que é tentar alterá-la. Segunda dificuldade: conta o lobby mais forte, em teoria, dos consumidores. Apenas em teoria, porque se não existirem empresas, não existem direitos dos consumidores. A Comissão Europeia não tem sido muito inteligente nestes assuntos. Se não existir um equilíbrio que permita as empresas segurarem os direitos dos consumidores, entraremos numa situação absolutamente brutal, em que prevejo grandes dificuldades para uma operação turística, como nós a víamos antes da crise e a pergunta é: se não continuar uma operação turística antes da crise, como a substituir? Ninguém sabe responder a esta pergunta e a resposta óbvia tem de ser: temos de flexibilizar, de aligeirar, distribuir por mais elos da cadeia de valor a responsabilidade do fornecimento de maneira a atingir o equilíbrio de forma a perdurar a confiança que o consumidor tem ao viajar.
Como é que as agências estão a lidar com a reposição da normalidade? Já não há vouchers, mas os riscos de cancelamento mantêm-se. Há seguros apropriados?
O mercado colapsou. Neste estado de coisas, a atividade dos seguros também colapsou e, em meu entender, também não está capaz de dar uma resposta imediata. O único aspeto que torna esta realidade menos dura é que, infelizmente, também não há marcações de viagens, exatamente porque há um bloqueio entre a oferta e a procura e o mercado está um zombie. A nossa esperança é que quando as reservas recomeçarem, recomeçam num mundo mais normal. Num mundo mais normal, a probabilidade de haver cancelamentos é muito menor, e é possível que sejamos capazes de reintroduzir a atividade de seguradora, porque vai passar a haver um equilíbrio, num mundo normal, entre os prémios que são pagos e o risco que está associado.
O Fundo de Garantia das Agências de Viagens será capaz de dar resposta a possíveis problemas no setor?
Não, é incompletamente incapaz. O Fundo de Garantia é como a atividade seguradora. Não podemos olhar para nenhum dos instrumentos económicos que tínhamos, nem para nenhum dos modelos de negócios que tínhamos, e transportá-los para a fase atual. O mundo económico foi interrompido. Não estamos em atividade económica. Desse ponto de vista, também o Fundo de Garantia não é capaz de responder minimamente ao que está em causa. Quando a situação voltar ao normal será capaz como foi até agora. O Fundo de Garantia todos os meses pagou sinistros e ficou sempre com saldo superior. Em dinâmica económica normal do setor, o Fundo responde e tem sido uma preciosa ajuda para a perceção do consumidor de que as agências de viagens são um porto seguro.
Outra questão é se em 31 de dezembro de 2021 estarão todos aptos a reembolsar os consumidores?
Isso sim é um desafio grande para o qual ainda não temos uma resposta óbvia. Ela acontecerá. Em circunstâncias normais, diria que sim, porque nos deram tempo e porque, se recebermos dos nossos fornecedores estaremos aptos, em circunstâncias normais, para pagar aos consumidores os vales que, entretanto, não foram utilizados. O maior problema da data de 31 de dezembro é que era previsível uma utilização mais escorreita dos vales. Como a retoma não está a acontecer, e como a crise se está a prolongar, o valor a ser utilizado será utilizado num período mais breve de tempo.
Seria razoável alargar esse prazo?
Julgo que é prematuro. Não gostaria de alargar, porque foi feito um contrato com os consumidores e penso que alargar esse prazo seria ferir de morte a confiança já abalada dos consumidores perante tudo o que os rodeia. Outra questão é saber se conseguimos ter, por exemplo, um empréstimo de longo prazo que nos permita com mais facilidade manter esta relação de confiança com os consumidores, e ao mesmo tempo não ter problemas de tesouraria acrescidos pelo facto de não haver uma utilização escorreita dos vales por um período superior. Outros países já começaram a dialogar nessa área. Se a nossa vontade for para a frente, se conseguirmos convencer o governo das nossas razões, penso que acabaremos por tentar realizar um empréstimo de longo prazo que permita reembolsar em 31 de dezembro de 2021.
Leia a entrevista na íntegra aqui.